Foi um desejo súbito de escrever sobre burros.
Todas na vida, mais tarde ou mais cedo, fomos presenteadas com a asinina dádiva e as que não souberam ou não puderam metamorfosear o dito em cão de caça (daqueles: vai-busca-busca) lá foram, apeadas (porque normalmente os nossos burros não dão montada) pelos pirinéus da vida muitas vezes com a descendência dos burros às costas.
Para escrever esta crónica inspirei-me num burrico cinzento-nojento com que uma das minhas netas dorme há seis anos – deram-lhe logo um burro à nascença – e é inveja que sinto ao ver a paz com que aquela menininha dorme agarrada ao bicho-inerte, já quase sem pêlo, mas quedo como um papalvo.
Destes burros é que nós todas, velhas e novas, precisávamos. Burro assumido, sem mais obrigação para lá das nossas pessoas. Um burro animado pelos nossos humores, cantante, risonho, plácido ou apalhaçado q.b. para nos distrair. É o burro dos sonhos de qualquer mulher madura com os pirolitos no sítio.
Chateia? Tira-se-lhe a pilha. Xô, acabou-se.
Porém, muito há que dizer sobre os burros, os outros, aqueles que as leitoras conhecem. Algumas mais desbocadas (não é o meu caso) chamam-lhes «burro d’um cabrão» mas pagam bem caro os desmandos como rezam as estatísticas sobre a V.D.
Adiante, os burros:
Eles gostam de arquear o garrote sempre para as alturas i.e. fingem que apreciam a inteligência, a argúcia, a intelectualidade da companheira que cortejam Mas lá no fundo dos seus bojos reboludos procuram apenas uma Jerica. Estes são os burros-chapados, capazes de transformar uma Madame Curie na grunha mais inerme e nesse estádio atingem a plenitude. Mas também há as tais companheiras que se recusam ou não conseguem descer até à bestial espinhela e aí começam os coices que normalmente acabam nas patas de um burro ou burra de toga que deixa aos dois de tanga. Acima, com a sigla V.D. são os biliões de conflitos em que os coices deles sobre elas (deles, em 99,9% dos casos) conduzem as burras-fêmeas aos cuidados intensivos ou do Hospital ou do Cangalheiro.
Observemos:
O burro é oportunista. Não há Bíblia, presépio ou altar onde o maldito não esteja presente com aquele seu arzinho de coisa dócil. OK, foi um deles que levou a Senhora e o Menino para o Egipto, mas isso, qualquer camelo o faria. Este é o burrinho, pronto, não se fala mais nisso.
O burro é feroz. Debaixo da pelagem surrada esconde um tigre sempre atento ao salto para os costados da presa. Basta contrariá-lo e a natureza sobe-lhe à tona como o azeite. A melhor maneira para lidar com a violência de um asno é dizer-lhe a tudo que sim ainda que depois se lhe aldrabe uma peta. É o asno-matriculado.
O burro é cobarde. Observai-o só e no meio de uma récua. Quando está só, baixa os olhos pestanudos, guarda a dentola e a gente pensa – Tenho burro!
Emburricado na récua, com os colegas, reviravolta-se: O pamonha abana-se todo, zurra como um desalmado ao mesmo tempo que os outros burros todos, e se mete copos é de fugir.
O burro é complexado mas super-vaidoso. Quem nunca o ouviu a gabar-se aos congéneres : Já viste a cavalona que tenho agora?
E um burro velho pelanguento/com a crina a cair, a exibir-se aleivosamente nos quadris de uma equídea jovem? Este auto denomina-se «um burro de sorte».
O burro é versátil. Há burros para tudo. Há os normais – sem instrução – usados para carga ou montada de velhas com galhinhos de lenha. Há os burros assim-assim que se ficam pelas repartições, lêem a Bola e o Record, zurram muito alto e almoçam fora ao domingo. E há os que espinotearam até às universidades. Perigosos: Os burros-sábios. Muito menos valorosos do que qualquer égua que com eles compita, ficam sempre à frente e são chefes de tudo.
Por detrás de um grande burro há sempre uma grande burra que vegeta na sombra do burro-mestre. Em antropologia, temos aqui a origem das burras-tristes. Não são burras mas fazem de conta, elas lá sabem porquê.
Para além do burro lusitano, há sub-espécies, descendentes também do burro-africano, das quais destacamos o Burro Nórdico e o Burro Anglo-Saxónico. Burros loiros, vaidosos que metem nojo e com a mania que são melhores do que os seus congéneres de pelagem escura.
Depois de atentíssimos estudos sobre a sua morfologia e comportamentos, não conseguiu a cronista chegar a uma conclusão digna de tanta pesquisa pois : Burro é Burro, aqui ou na Moita.