Na altura, qualquer pormenor era importante. A febre de conhecimento e saber procurava encontrar todos os detalhes, como se neles residisse a grande descoberta. E, aos poucos, essa curiosidade infantil foi desaparecendo. Com o passar do tempo comecei a prestar muito menos atenção a onde colocava os pés, ao formato das nuvens acima da minha cabeça, à luz de uma estrela que acende todas as noites lá no céu, distante, ao bem que sabia meter a mão de fora de um automóvel em movimento, ou a contar quantos degraus são até à porta de minha casa.
Sim, para quem se saiu tão má a Matemática, até é curioso, pois eu contava muito antes de saber ler e escrever. Contava as pedrinhas escuras na calçada branca portuguesa (pois só podia pisar essas), contava os postes de electricidade que passavam pela janela do comboio a uma velocidade açambarcadora, contava os dedos das mãos e os dos pés sempre que me pediam… cheguei até ao cúmulo de contar a quantidade de carros vermelhos, brancos e pretos que passavam na minha rua durante uma hora, como se estivesse a fazer uma qualquer estranha estatística (na minha infância não havia uma enorme quantidade de carros de outras cores)… o engraçado é que não fazia a mínima ideia do que seria Estatística.
Um qualquer evento isolado conseguia fazer-me feliz o dia todo, aos pulos e aos pinotes como se a energia nunca se fosse acabar, mas um qualquer evento triste não me punha deprimida por mais do que meia hora.
Quando oiço as pessoas dizerem que queriam ser pequenos outra vez, eu compreendo perfeitamente o que querem. Não estão com vontade de ser mais baixos, mais dependentes, mais protegidos, mas querem voltar ao tempo em que a alegria era sempre motivo suficiente para se estar alegre, ao tempo em que a tristeza tinha pouco tempo de antena, em que os problemas com os outros eram resolvidos com um simples pedido de desculpas e aperto de mão, em que os trabalhos eram vistos com uma cumplicidade pueril, em que queríamos sempre mostrar que éramos grandes e fortes e que conseguíamos fazer o papel de adultos. Quando uma bicicleta seria entretém para mais de muitas horas, tal e qual um gatinho, um carreiro de formigas ou as simples pedras da calçada. Quando todas as coisas deste mundo nos surpreendem e alegram como se soubéssemos delas pela primeira vez.
Na realidade, quando me ponho a pensar, não é da genica e da juventude que as pessoas sentem saudades, nem do facto de estarem dependentes, e pouco saber dos males da vida. Nada disso! As pessoas têm saudades de quando não olhavam só para dentro, quando queriam ser sempre os bons. Hoje em dia andam todos a tentar ser maus q.b., quer seja por estar na moda, quer com medo da indefensabilidade. As pessoas crescem e perdem a vontade de sonhar ou não se permitem a isso. E acham que perder a vontade de sonhar faz parte da maturidade. Estão enganados. Faz parte da desilusão. As pessoas não se desiludem umas às outras. As pessoas desiludem-se sozinhas. Sempre. E isso cega a criança sonhadora dentro de si mesmas. Daí o saudosismo.
Lembro-me de quando era pequena e uma mão cheia de areia era um prato de arroz doce, as bonecas todas minhas filhas e para chegar a casa ia de elevador até ao primeiro andar e depois subia vinte e três degraus a pé, consequência de não chegar ao botão de andar correcto.
Selma Nunes
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