Uma crónica ao ódio

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Vim passar o Verão em Olhão, pelo menos até Setembro.

Dou comigo a vaguear pela casa onde viveram os meus pais e sempre com a sensação de estar a mexer no que não me pertence.

E afinal o que é que pertence a cada um de nós?

Creio que só as memórias, nada mais. À minha volta há móveis e livros velhos, televisões e mais móveis, tapetes, candeeiros antigos, lençóis de linho bordados à mão. Rendas de bilros, «naperons». E a envolver tudo isto a memória.

E descubro que não tenho saudades da infância.

A mãe pareceu-me triste e quase ofendida porque um dia fiz esta afirmação diante dela. Mas é verdade.

Saudades de quê? Do medo do escuro? Da vergonha de ser gorda? Da raiva de não ser rica e loira como a Eduarda e daí o pavor de não poder nunca realizar os meus sonhos? Da raiva que me mordia sempre que me diziam «Isso é coisa para homens!»

Foi essencialmente nestas teias que vivi a infância. Tive sonhos, tantos e tão belos, mas ensinaram-me que eram grandes demais e que eu iria ser – nada.  Quando descobri que afinal os sonhos nunca são grandes demais… já não eram sonhos.

A infância não tem olhos próprios. Tem nas órbitas os olhos dos outros e na boca as suas palavras e hoje quando me revolto não é só contra aquilo que não fui mas também contra o que me ensinaram a não ser, a não querer, a não ambicionar.

O lema era o mesmo, em casa e na escola. Até fui aprender a cozinhar. «É importante as meninas saberem apaparicar os maridos». Era a D. Etelvina, nossa mestra numa cozinha pertencente à Mocidade Portuguesa. «E nunca sacudam a farinha do pacote para dentro da tigela, sujariam a bancada, usar sempre uma colher para tirar os ingredientes! O que diriam os vossos maridos se as vissem a sujar a cozinha?»

Mal sabia a D. Etelvina que estava a preparar seres híbridos que viriam a ser burras de carga de patrões, maridos e filhos. Burras que um dia iriam perder a cabeça e despejar os potes da farinha sobre as augustas frontes dos esposos.

Lembro-me da minha entrada na religião. As aulas de catequese, a força que eu fazia para crer em deus, e a culpa que sentia por não conseguir encontrar dentro de mim a fé cega que então acreditava nas certezas dos outros. E não me ensinaram a duvidar.

Odiei o Padre Delgado na única vez em que me confessei, tinha sete ou oito anos e ele me perguntou lá das profundezas mal cheirosas do confessionário «A menina masturba-se?

Eu não sabia o que era a gente masturbar-se mas pelo tom cavo da pergunta, miei «Não».
Mandou-me rezar uma chusma de ave-marias porque eu lhe confessei a minha gula insaciável por chocolates e foi então que as mais velhas me explicaram o que era aquilo de «masturbar-se».

O sol que brilhava no adro da igreja fez-se cinzento e nesse dia nem comi o bolinho de arroz no Sr. Melo.
Lembro-me de ter sentido vómitos.

Creio que esta foi a minha primeira desilusão dentro da Igreja Católica. A partir dali só lá entrei para velar mortos.
Depois fui vida fora e foi o ódio que me ensinou o caminho sem fé, o ódio e o desprezo por mim mesma, porque passei a maior parte da infância e da juventude a puxar a saia para cima dos joelhinhos, a corar como uma melancia sempre que alguém dizia «merda».

O ódio pelo sexismo, pelo racismo, o ódio de ser menos por ser mais, o ódio do trabalho a quadruplicar para ter a bênção de ganhar tanto como os homens lá no emprego.

O ódio por ser a mulher/pertença de um ser odioso, ódio?
Do ódio passei ao tédio. Do tédio à indiferença.
Abaixo da indiferença só pode ser o inferno. O tempo o dirá.

Jl
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