Lá vou, munida do saquinho e do papel para a limpeza a que a incivilidade das ex-lobas me obriga.
– Calorão, bolas.
Caminho devagar, converso com o meu vizinho Joji, um pequenino de 2 anos e lá vou abaixo e acima, cumprir o dever de quem tem cão.
Lá está ele.
Passo todos os dias ao lado de uma janela, no rés do chão de um dos prédios, onde há um homem sem idade, baixo, rosto magro e quase sempre, muitas vezes, atrás dos vidros de uma janela a olhar. Está a olhar, apenas. Nunca tive contacto visual com ele, creio que nem as cadelas. Às vezes está na rua parado a olhar, só.
«Um dia dás contigo a falar sozinha.»
Tinha razão a minha mãe. Dou comigo a falar sozinha, ou em grandes divagações com os canídeos ou a pensar. E o vizinho?
Há bocado encontrei-o a meio do passeio, parado – a olhar.
As cadelas não lhe ladram nem o cheiram. Às vezes penso se ele não existirá apenas na minha imaginação.
É bonito. Tem expressão de menino no rosto magro, o cabelo alourado, os olhos de um azul-água-marinha que parecem ter-se escapado da tiara de algum faraó longínquo.
Imagino aqueles olhos miúdos a passear-se pelas montanhas de um cérebro confuso, presos no leito seco de um rio anónimo que corre a saltita entre seixos e fetos e ninguém sabe. Só ele.
« Pára, olha o comboio!»
Pobre cadela, nunca tinha visto um comboio, tremeu como varas.
Voltámos atrás. Passeámos até à nora velha que era perto da casa da madrinha e depois, perto do sítio onde um dia morou a minha avó e é agora é um pequeno prédio guardado por uma espécie de pittbull que me pôs a correr com uma das reboludas debaixo do braço.
Voltámos à Avenida.
Ele lá estava no mesmo lugar. O cinto desapertado, os dedos a balançar como se tocassem castanholas invisíveis.
Não há bom dia nem olá nem adeus. O seu tempo parece estar preso no lugar secreto onde vagueiam esmorecidas aquelas águas marinhas cheias de mistério.
Entro em casa. Fecho a porta sobre a avenida onde cresci, corri, sofri, chorei, onde às vezes fui feliz.
Ainda me assomei à janela.
«Ciao Joji» o riso do menino encheu-me a alma de uma primavera cheia de açucenas. A mãe aconchegou-o no peito farto.
Do outro lado, o meu vizinho diferente parecia absorto nas pancadas secas das cegonhas lá no alto das araucárias velhas, depois, deu meia volta e fechou-se em casa.