Novercafobia e Pentherafobia (*)

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feia
O rapaz continuava sentado no mesmo sítio, muito direito, debaixo de um suspiro de ar frio que escorria do velho ar condicionado que a velha, com muito orgulho, ostentava na mediocridade do salão.

feia– Dá qualquer coisa fresca de beber ao rapaz que eu vou tomar outro duche.

Saiu, bandeando as carnes opulentas.

A filha, magrita como um vime, suspirou de alívio.
– Tonik, queres que te faças uma limonada com gelo moído e tudo?
O rapaz respondeu-lhe que sim se faz favor.

Um cãozito preto saltou-lhe para o colo. – É muito querido esse Dandy – O bicho engelhado, lambia-lhe o sal dos braços. – Não tenhas medo. Ele só quer festas e além disso já não tem dentes para grandes aventuras.
– Uhm – respondeu o rapaz com os olhos suspensos num enxame de traças que a velha ostentava pespegadas na cola traiçoeira de um engenho que comprara num hiper na semana passada.

Foi de pouca dura a paz entre os namorados, o cão rafeiro e os cadáveres das traças.
– Já cá estou. Banho-me quatro ou cinco vezes por dia. Sacudiu-se como uma pata, acomodou as nádegas farfalhosas num sofá meio derreado e compôs uma espécie de tenda cambraia branca por cima dos tornozelos inchados. As pernas assemelhavam-se a pneus brancos sobrepostos por ordem decrescente até à aflição dos pés que pareciam gemer sob o peso do corpanzil molengo. O cabelo ralo, molhado, emoldurava-lhe uma carantonha de Górgona que tivesse devorado as serpentes.

Chupou os beiços finos, compôs sub-repticiamente as placas dentárias e recomeçou o julgamento.
– Ah, então o menino não gosta de perfumes nem desodorizantes. Bonito. Espero que ao menos goste de água e sabão azul e branco.

A Manelita ( a filha que parecia um vime) afagou o rosto ossudo do rapazinho. – Ó mamã, ele toma banho todos os dias, mas não gosta de entrar pela adega a cheirar a rosas. Temos de respeitar o gosto dos outros.
– Tonik  – recomeçou a execranda bola – percebo que você não queira  entrar na Adega a cheirar a rosas, agora essa história de não usar um fato, casaco, gravata nem sequer para um casamento,  é simplesmente inadmissível.
A «vime» olhou a mãe e retorquiu – Um enólogo não pode andar perfumado, prejudica-lhe o olfacto e além disso eu também não sou de enfeites e exageros.
– Pois – resmungou a velha levantando o canto do beiço.
A pequena continuou advogando – Estou de acordo que para um casamento destes se tem de pensar na indumentária com algum esmero. O hábito não faz o monge mas…
– O menino tem de mudar! – Resfolegou a carnuda – E é óbvio que não pode ir a um casamento destes entrapado em gangas. Veja a posição da minha filha…

– Qual posição? De cócoras dentro de buracos, de pico e pincelinho nas mãozinhas gretadas? Ora a senhora…
A acidez da irritação começava a desfazer o verniz do pobre rapaz.

A obesa, alcançando com um esforço uma lata de brigadeiros cremosos, olhava o rapaz enquanto entre as dentaduras os doces se desfaziam e depois, limpando a baba acastanhada da bocarra, continuou – Vou fazer de contas que não ouvi essa alusão aos instrumentos de trabalho da minha filha, mas diga-me lá, nunca vestiu um fato? Um blazer? Passou logo das botinhas de lã para esse estilo amarrotado de sapatorros de ténis?

Bem, para que a conversa não acabasse em trovoada de S. João, o enólogo concordou em substituir a camisa de ganga por uma de cambraia azul clarinha que o sogro lhe emprestou e deixou que as patorras da velha lhe esfregassem a face esmorecida com uma loção de barba.
– É da CK, aqui não há zurrapas!

Estou a escrever esta crónica já quase em Setembro e sem querer ouvi a velha ao telefone com voz de trombone – Ah, já foi comprar um fato! Foi a irmã que o obrigou, pois, pois. 
Ainda bem! – Sorria, enquanto devorava um cestinho de figos – Estava já a ver a vergonha no casamento da Pimpinha. As tias médicas, os almirantes, os catedráticos, os pilotos, até ministros! E os pequenos da alta sociedade todos bem postos e tu de braço dado com um Baco magricelas em trajes da vindima…- Coçou o cabeção suado

– E tu vê lá se tratas dos pés e vais à manicura e pintas umas madeixas nesse cabelo e se trazes uma écharpe capaz e já agora diz a esse camelo que ….

Não ouvi mais porque a anciã se engasgou com um figo mas quando fui preparar o quarto do casalinho, descobri dentro da mesa-de-cabeceira uma folha de papel onde se lia:

«Sogra e Furão : só debaixo do chão. Sogra e Madrasta só o nome lhe basta. Língua de sogra de cabidela. Novercafobia ahahah; pentherafobia ahahaha.»

* alergia  a sogras

Jl
mjsl2010mail.com

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