Monólogo no escuro

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Fantasmas verdes à luz do dia, alguns com flores, outros com picos e sem raízes, fantasmas tristes mortos de sede com o sol diabo de chama em punho.

Nao percebes isto, claro, um homem torna-se híbrido atrás de umas grades. Leão de circo, ave canora, cobaia de laboratório. Os meus olhos são agora presa de uma teia de que fui a tarântula e a mosca incauta, as minhas mãos perderam-se do tacto e o meu olfacto fez-se prisioneiro do odor do sangue fresco.

Que bom sentir-se um homem acima de si mesmo. Quem é que diz que matar diaboliza? Não. Quem mata é acima de deus, ultrapassa o rebanho dos resignados ao destino e arrepia caminho.

Hoje penso no tempo precioso que gastei a salvar vidas. Já viste que infligi mais sofrimento àqueles a quem salvei a vida, do que a este vermiforme néscio que matei com a minha dor?

Orgulho-me das minhas mãos menos por todos os carinhos que distribui durante a vida do que por terem matado. Meus dedos finos, minhas mãos fortes a apertar, a apertar, e aquele par de olhos horrorizados perante a graciosidade do meu gesto de misericórdia.

Primeiro libertou uma espécie de ganido que passou a sopro, depois silêncio. Os seus olhos permaneceram abertos diante dos meus como se lá do outro lado quisesse ainda puxar os fios da marioneta em que me tornou.

Coitado. Adjectivo-o como se fosse um rato estúpido a cair incauto num tabuleiro de cola com uma rodela de chouriço.

O nojo que me inspirou a seguir é incontável. Cadáver feio, muito branco, os lábios finos sumidos na flacidez das fauces descaídas.

Não consegui ficar por ali.
Olhei o meu corpo. Olhei-me ao espelho e vomitei não pelo homicídio acabado de praticar mas pelo homicida que o maldito morto vinha esculpindo em mim cada vez que o sodomizava, lhe chupava os beiços ressequidos, o sexo mole, infecto, pestilento.

O meu ódio foi-se construindo à medida que a minha personalidade se desmoronava ao lado daquela caricatura grotesca e como uma criança que desfaz um mono, comecei a seviciar o que restava da bosta que era quase eu.

Retalhei-o retalhando a minha alma, matei-o matando-me.

Agora? Penduro o que foi de mim num cabide suspenso nos cornos da humanidade.
Isto não me aconteceu. Não me aconteceu.

Jl
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