Monólogo de um cordão umbilical (para a Joana que tem a minha força)

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Sangue, papagaios rubros, relâmpagos com as cores do arco-íris a explodir de um cano negro sobre a alvura da tijoleira branca.

Um fio insidioso a escapar-se. Duas asas a descaírem num rodopio de roupas brancas.

O desespero ergueu-se entre dois braços e uma serpente vermelha avançou sob o terror atónito das vítimas.  
– Olhos abertos! Não podes desmaiar agora.

Tudo era silêncio e sangue morno. Nem um gemido, só medo e mais sangue.
Eu ganho forças, reteso-me.

A noite transformou-se num semáforo verde o carro avançou sem travões impelido por uma força que talvez deus mandasse. Talvez houvesse deus e eles conseguissem chegar a tempo e talvez não e aquilo fosse o diabo, mas se há diabo tem de haver deus seu contrário. E se não houvesse nada neste desgraçado universo onde se nasce e morre sem esperança, correndo como agora contra aquela corrente que parecia misturar-se à baba da morte?
Não tenho tempo para conjeturas . Destas filosofias só os mortos sabem. Devo concentrar-me.

– Bolas!
O carro rodopiou na estrada molhada. Endireitou-se. Senti-me sacudido mas aguentei. Levaria a cabo a minha missão.
– Tenho frio! Deus, o bebé não se mexe.
– Calma, respira fundo, estamos a entrar no hospital.

Foram meteóricos os minutos seguintes.
– O feto não mexe mas está vivo temos de o pôr cá fora.
– Incisão!
– Vigiem a mãe, a criança está bem.

Cortaram-me rapidamente e agora sou lixo junto da placenta estropiada e rota.

Não torci, não quebrei, só a tesoura afiada conseguiu separar-me do corpinho vibrante que eu defendera até ao limite da minha fragilidade.
Ouço o vagido forte do menino. Parece querer agradecer-me antes que me levem.

Cumpri o meu dever. Estou agora no contentor para a incineração.
Irei com o fumo juntar-me às nuvens, fazer parte da galáxia onde, à tardinha, os milagres se juntam e os anjos tomam chá com as estrelas. Em seu redor há luas sorridentes e constelações brilhantes de cordinhas frágeis que quiseram ser amarras, e conseguiram.

Julieta lima

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Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico – convertido pelo Lince.

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