Gota a gota
Temperadas com vodka, as gargalhadas dos homens enchiam de esperança a aspereza do inverno. Daí a pouco era vê-los nus como crianças grandes e loiras a caminho das roupas garridas, mãos enormes a ameigar a cabeça dos cães. Homens e animais em simbiose, frio, neve, histórias recontadas ao calor das brasas, rena grelhada, café, mais café,mais vodka e o sono agasalhado na cabana que os integrava – pianíssimo – na sinfonia branca da Lapónia.
E agora?
Nada. Gota a gota o que resta do bocado de tempo que cabe a cada um.
Como será dividido o tempo? Quem decide quem ganha mais… ou perde mais? Não penses. Bebe mais um gole. Enrola-te como um feto desejado num útero morno. Esperam-te lá fora. Vão amar-te muito e um dia, vão ensinar-te a ser ainda que não o queiras. Vão obrigar-te a viver. Ah sim, vão dizer-te que viver é bom e tu vais acreditar até que a alma te diga que é mentira. Tudo mentira.
A vida é o pólen, vai, vem, incomoda e desaparece.
A vida é um passeio ainda que te doam as pernas.
A vida é um canto, ainda que molhado pelas tuas lágrimas de desencanto.
Vai ser bom ouvir-te rir, ensinar-te a andar e a nadar.
E vai ser bom partir quando souberes voar e construir o teu ninho.
E vai ser bom não ser, não ter de ser, nem saber, quem sabe, espreitar-te por alguma fresta que morte conceda aos que amaram muito.
Por fim, meu amor pequenino, vai ser bom desaparecer no abraço de uma onda que nunca mais regresse a estas praias onde nasce e vive a crueldade dos homens. E a mentira.
Julieta lima
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico.