Nem que vivamos cem vidas e mudemos em todas elas – não há marisco como o da Culatra

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ponte maritima
ponte maritimaO mesmo vento que despenteava os grãos de areia empurrava a nuvem e eriçava os cabelos desgrenhados, cheios de sal. Sorriamos infantilmente, com alguma fanfarronice a pular nos cantos dos lábios. Queríamos nadar mais rápido, ser mais fortes, queríamos o mundo inteiro aos nossos pés. Acreditávamos que era possível.

Apanhávamos burriés com água pelo joelho e derretíamos as tardes entre mergulhos, lutas de espadas e petiscadas caseiras regadas com refrigerante. Éramos inocentes e não queríamos admiti-lo, pois a intenção era crescer mais depressa do que a maré a encher. Todos nós. Na realidade, éramos uns tontos. Líamos livros de aventuras, andávamos aos pulos por todo o lado, ora escondidos entre dunas com a lua cheia como companheira, ora tentando não ficar de castigo por trazer demasiada areia para dentro de casa, por não chegar a horas estipuladas, por não obedecer cegamente à autoridade nas nossas muitíssimo socialmente ocupadas vidas.

E crescemos depressa, com várias marés a regar-nos as raízes de veraneio, alimentados em casa, normalmente, mas também movidos a ostra, mexilhão, conquilha e tudo o que servisse como desculpa para estarmos mais umas horas juntos. Estávamos visceralmente conectados e provavelmente, respirávamos em grupo também.

Uma coisa que não sabíamos na altura: separar-nos-íamos ao ritmo da vida. Agora encontramo-nos por acaso e parecemos desconhecidos. Ficamos entre tímidos e cheios de vontade de rir por nos lembrarmos uns dos outros e não nos reconhecermos assim tão adultos e cheios de manias.

No outro dia dei por mim a sorrir por ver uma foto de alguns de vós em petiscada numa rede social. Foto recente. Fresquinha. Ali estavam, sorridentes, à volta dos mariscos do costume, no sítio do costume. Nós talvez tenhamos perdido algumas das qualidades da juventude… e é bastante provável que nos tenhamos perdido uns dos outros também.

Se calhar, hoje em dia, seremos tão diferentes que nem conseguíamos ser unha e carne uns com os outros… mas há uma coisa que ainda sabemos, pois crescemos expostos ao mesmo vento e alimentámo-nos do fruto das mesmas areias: não há marisco como o da Culatra. Nem que vivamos cem vidas e mudemos em todas elas. Vi a vossa foto. Tive pena de estar a trabalhar e não vos rever, mesmo sabendo que ia ficar tímida. É que o peito fica cheio de tanta coisa para contar e as palavras adormecem por lá, pois não importa.

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