A Primeira Carta para Asgárdia tinha de ser portuguesa. Para: Alice Albardada, órbita da Terra, Asgardia.

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selma -_asgard
selma -_asgardQuerida Alice, 

Espero que esta carta te encontre bem por aí em Asgardia, o país das maravilhas. Por cá está tudo mais ou menos igual, só mudam alguns ventos. Mas aí não há vento, pois não?

Desde que decidiste mudar de nacionalidade e de país, sendo essa tua nova pátria estranha a todos, inclusive a ti, as coisas têm andado um pouco estranhas. O nosso grupo de teimosos dividiu-se em cisma. Confesso: pareceu-nos um pouco cobardia, isso de começares de novo, fora do planeta Terra, para um país inventado, virgem, sem história, raízes, cultura e, claro está, sem o peso de já terem feito asneira da grossa no passado, como todos os outros países daqui.

Por outro lado, parece-nos uma aventura e tanto! E as mentes divagam a pensar em estações espaciais e filmes do género. No fundo, falamos assim da tua ida, um pouco invejosos da tua coragem, ou cobardia (as duas coisas, talvez) e porque sentimos a tua falta. Havemos de nos habituar a olhar para cima, ver-te pelo skype e a imaginar-te a rir de nós, enquanto estragamos tudo à nossa volta. Não nós, os teus amigos, um punhado de badamecos portugueses, mas a humanidade, no geral. Tu dizes que és o quê? Asgardiana? Ex-portuguesa? Tens encontrado consolo artístico? Ou outro tipo de consolo? Como matam o tempo por aí? Como contam o tempo? Será que o tempo conta?

Voltando à Terra, os velhos países continuam na mesma. Duvidosos e desconfiados. Concordando em discordar dos aliados. Discordando dos outros e bebendo-lhes o sangue. Preservando ligações comerciais. Baixando as calças em prol do ouro negro, de umas sementes, de uns tostões, queimando as matas, implodindo o solo, furando, retorcendo, aquecendo, derretendo e julgando todos à volta. A sociedade global estandardizada, higienicamente consumista e antibacteriana, globalmente mergulhada em tecnologia inútil de entretenimento e fingindo-se ideóloga, ética ou religiosa… ou todas juntas, onde grassa a violência doméstica escondida e a pobreza envergonhada. Um ocidente mimado. Um oriente desconhecido, em rebelião… e o resto ou subnutrido, ou revoltado… ou concentrado em campos de pré-morte, para não assustar os turistas.

O nosso Algarve ainda está quente. Quase Novembro e andamos de t-shirt, não assumindo nem o Outono nem o regresso do cinzentismo noticioso. Como uma revolta das pampas, mas silenciosa.
Os ilhéus ainda estão em luta. Chegaram cartas. Sei o quanto isto te revolta… não me admiro que quisesses deixar de ser portuguesa, europeia… terrestre. Que asco.

E se fosse só isso… continuam a subir muros. Fala-se de uma Segunda Guerra Fria. De uma Terceira Guerra Mundial. Se os receios forem fundados, só vocês aí no espaço se safam, talvez. Está tudo doente. Os mentecaptos têm cada vez mais poder.

Lembrei-me. Tendo em conta que já têm cidadãos suficientes aí na vossa colónia, ou novo país… o que seja, aí em Asgardia, e se forem reconhecidos como país e tiverem um certo número de compatriotas e por consequência, assento nas Nações Unidas, façam melhor que os outros. Sei lá, Matilde… não me parece interessante sair do nosso Algarve, do nosso Portugal, para andar na órbita de um planeta dormente, doente, sanguinário e poluído (sendo que para ti, acrescenta-se também… devoluto).

Para ti: chocolate de alfarroba, doce de tomate, aguardente de medronho, batatas doce de Aljezur, flor de sal, cerveja artesanal, figos cheios, uma torta de amêndoa e laranja algarvia. A ver é se te informas como te mandamos esses miminhos.

Saudades tuas. Detestamos-te todos um pouco por teres partido. Responde ao mail:
Os teus miseráveis amigos

Selma Nunes

(Nota da autora: ver notícia http://exameinformatica.sapo.pt/noticias/insolitos/2016-10-13-Asgardia-quer-ser-o-primeiro-pais-espacial-em-2017.-E-ja-aceita-pedidos-de-cidadania)

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