Da minha janela vejo limpa garrafas vermelhas e uma linha de árvores que começam a criar umas flores roxas que mais parecem adesivos decorativos e quase permanentes para vidros automóveis. Porém, as minhas visitas à lavagem auto estão tão adiadas quanto parte da minha capacidade produtiva. E assim deverá continuar por mais uns tempos.
Daqui, vejo os comboios a passar quase vazios. Habituei-me às leituras na varanda ao sol, às corridas de meia hora para mexer os músculos, às escritas nas horas mortas da tarde, à utilização de máscara e luvas no supermercado e a estar neste estado de suspensão profissional, no qual me mantenho como se fosse uma partícula de pó que não almeja aterrar em nenhuma superfície. Grave e sem gravidade, simultaneamente.
Enquanto os dias passavam e as nossas vidas circulavam a uma lentidão que não parece coisa deste século, já se desce um degrau e passa-se de Estado de Emergência para Estado de Calamidade, e foi apresentado o plano de reabertura progressiva da economia. Já não se fala tanto na tal guerra. Fala-se de liquidez, dinheiro.
Não obstante, há que ter em conta que uma coisa é abrir gradualmente alguns sectores da economia, outra, completamente diferente, é sucumbir à trivial necessidade de sair porta fora sem objectivo fundamental e necessário. Continuamos ameaçados com uma segunda vaga desta coisa invisível e depende de nós e do nosso civismo o controlo desta estranheza que ameaça cortar-nos o oxigénio.
Depende dos nossos cuidados, que agora se querem mais alargados e vigilantes, a manutenção da resposta do serviço do SNS e das instituições. Não podemos agir como se estivéssemos na fuga das galinhas e espaventar-nos portas fora. Não estamos ainda na tal normalidade. Não há vacina. Não há cura. Não houve nenhum milagre e assim, teremos de, civilizadamente, ponderar os nossos gestos de acordo com o tamanho das nossas vitórias.
A pior equipa é sempre aquela que ao ganhar um jogo, assume como certo todo um campeonato. Há que não baixar a guarda, até porque agora depende ainda mais do controlo de cada um nós. Atenção, para que na derivação das frustrações da clausura, não se transporte o inimigo para onde não se deve, colocando em causa o esforço e as conquistas de quase dois meses. Mais do que nunca, não devemos facilitar.
Selma Nunes