Se alguém que calçasse o 36 e usasse uns chinelos tamanho 40 gamados a outra pessoa, clamando-os como seus e (e calcanhar de fora!), não conseguiria obviamente andar a preceito e perceber-se-ia rapidamente que aquilo era uma aldrabice pegada, pois estaria à vista e até serviria de chacota.
Contudo, e se fosse tirada foto apenas à parte da frente do pé e se a mesma fosse colocada em rede social, haveria certamente quem acreditasse que aquela era pura verdade. Se o pé fosse bonitinho ainda ganhava mais credibilidade, porque ainda há quem julgue que a beleza não pode cair em mãos tão erradas, ou em pés! Mas pode, sim, a beleza ser maquiavelicamente retorcida para além da superfície.
Tal como o exemplo do chinelo, há pessoas que não teriam crédito ao vivo e a cores, mas fazem das redes sociais o seu palco para mostrarem os chinelos de outrem (e até pés de outrem) à maneira que lhes convém. Umas pela busca incessante de atenção, outras alegando ingenuidade, outras por motivos mais perniciosos e objectivos, misturando as areias de modo a desenterrar as mais profundas frustrações de quem vê, levando sorrateiramente outras pessoas a concordar, embevecidas por tamanha elegância no colocar de pezinho.
As redes socias estão pejadas de treta em busca de encorajamento. Umas, são discurso directo irado, apoiado em bases falsas (falta a sola do chinelo), outros são mais zelosos e tiram pedacinhos de dados reais de fontes fidedignas, tirinhas que, sozinhas, deturpam estudos sérios para provar coisas que só sobrevivem despidas de contexto (é o caso do calcanhar de fora, que não aparece na fotografia).
Quando os níveis de desinformação são tão graves que as próprias redes sentem a necessidade de verificar factos, sacudindo, assim, a responsabilidade pelo que sociedades desinformadas, amedrontadas, frustradas e doentes possam fazer a sistemas democráticos anteriormente saudáveis, abrindo as portas do poder aos mais variados tipos de ego-maníacos/maníacas e seus grupos de interesses, o caso é grave e dá que pensar.
Neste momento, tenho-me divertido a ver aqueles que se alimentam da desinformação e da manipulação de ódios a chamar “censura” à verificação de factos. Porque estão a ser impedidos de puxar a chama ao terreno já de si tão fácil de atear. Não querem que lhes digam que aqueles chinelos gamados não são seus e que o calcanhar está de fora, como sempre esteve.
Não disseminem notícias falsas e acima de tudo, informem-se como deve de ser. É importante ver mais que a foto, ler mais do que o título. E quem o faz de propósito: não se faça de ingénuo, sendo cínico. Verificação de factos não é censura. Censura é, sim, o objectivo dessa gente, assim que corromperem instituições democráticas e lhes sugarem o poder. Depois, já ninguém lhes poderá dizer que o calcanhar está de fora.
Selma Nunes