Em 1950, ano em que começou a escrever uma coluna diária no jornal El Heraldo de Barranquilla, assinando sob o pseudónimo Septimus, Gabriel Garcia Márquez era um jovem jornalista, que tinha desenvolvido, com ajuda do seu professor de Literatura, o gosto por escrever. Nada mais. Não se antecipava, então, naquela cidade da costa atlântica colombiana, que se começava a descoberta de um dos maiores escritores do século XX, a quem recompensariam o talento, muito justamente, com um Nobel da Literatura. Nem o próprio sonhava com tal possibilidade. Queria escrever. E estava apaixonado por uma elegante jovem, de ossos largos e pescoço alongado, Mercedes Barcha (que seria sua mulher e a quem se referiria muitas vezes nas suas maravilhosas obras). Chamou, então, a esse espaço de escrita “La Jirafa (A Girafa)”.
Márquez trabalhava, para o seu espaço no jornal, textos de agência, notas de leitura, críticas literárias e musicais, textos sobre amigos, sobre eventos tão aparentemente pouco carregados de valor jornalístico como a eleição de uma Miss e tantas outras coisas, num “brique-à-braque” de temas, que despertaram os atentos e os menos atentos; tudo servia para o seu exercício, que classifica como «elaborações intelectuais», até ao momento em que, numa viagem, se apercebe do valor das memórias, do património que carregava em si, como um tesouro que era desconhecido de todos, mas que, contado com o seu estilo único, foi simplesmente brilhante.
Disse de si mesmo: «Sou um jornalista, fundamentalmente. Tenho sido jornalista toda a minha vida. Os meus livros são livros de jornalista, mesmo que não sejam muito visíveis. Mas esses livros contêm muita pesquisa e verificação de factos e rigor histórico, de fidelidade aos factos, que no final são grandes romances ou reportagens fantásticas, mas o método de pesquisa e tratamento de informação e factos é o de um jornalista» (Entrevista de Darío Arismendi, Rádio Caracol, Bogotá, 1991).
A crónica sempre foi um dos mais controversos géneros jornalísticos. Teóricos, intelectuais vários pronunciaram-se mais ou menos favoravelmente sobre o tema, sendo muitos os que não lhe viam mérito jornalístico. E outros, como Gabo (assim era conhecido Garcia Márquez), perceberam que a crónica é lugar de factos, de pessoas, de acontecimentos, de rigor, tanto como a notícia ou a reportagem, ainda que com a benesse de poder recorrer à plasticidade das línguas, da criatividade, da competência linguística dos autores. Curiosamente (e já referi isso noutros textos, por outras paragens), autores portugueses, como o imortal Eça de Queiroz, já faziam jus a esta formulação estilística do jornalismo, tendo deixado exemplos que não mereceram prémios Nobel, porque ainda não os havia.
Não quero que, por esta altura, pensem que “me ponho em bicos de pés” e me comparo a tais autores. Longe de mim! Apenas abraço, com alta estima, a possibilidade de ter mais um espaço de escrita, de uma escrita que também me apaixona e que, não tendo como inspiração um belo e elegante jovem, de ossos largos e pescoço alongado, vai tendo como influência as muitas girafas e elefantes (porque não nego a minha raiz africana), que vão passando pela minha vida.
Neste caminho que formos trilhando (não o de Kipling, feito numa selva de verdade, mas noutra, metafórica e simbólica), iremos descobrir, em conjunto, as coisas banais e os animais que eles nos possam fazer lembrar. Para que a memória, como afirmava Gabo, se guarde e, eterna, diga um dia quem nós fomos.
Sandra Cortes-Moreira *
* Licenciada em Comunicação Social, pela FCSH da Un. Nova de Lisboa, Mestre em Comunicação Educacional, pelas Faculdades de Letras e de Ciências Humanas e Sociais das Un. de Lisboa e Algarve e Mestre em La Educación en la Sociedad Multicultural pela Universidad de Huelva. É doutoranda em Educomunicación y Alfabetización Mediática do Doutoramento Interuniversitário em Comunicação, pela Universidade de Huelva/Espanha, sendo o seu tema de investigação a Turism Literacy.
Técnica Superior de Línguas e Comunicação na Câmara Municipal de Faro, é também Assessora do Gabinete de Informação da Diocese do Algarve, membro da equipa da Pastoral Diocesana do Turismo e secretária da Pastoral do Turismo – Portugal (PTP).