Há dias, num post publicado por uma amiga, encontrei motivo de diversão. E triste. Mas sobretudo, de reflexão.
Gemma, a minha amiga, é uma madrilena residente em Barcelona, com um grande coração e alma de artista. Esta mulher com “M” grande, de repente, escrevia o que parecia ser uma carta de amor “muy rara” (estranha), que começava com um «Fernando, liga-me». E seguia, enumerando as suas qualidades de «mulher ideal»: não é tatuada, é doce e feminina, cuida da casa e das plantas e da filha e dos muitos alunos e está disposta a abdicar dos seus diplomas de curso (Sociologia pela Complutense de Madrid, entre outros).
Percebi, está claro, de imediato, que era um exercício de ironia, delicioso pela boa escrita, característica do discurso da Gemma. Triste pelas razões que o motivaram: um tal Fernando Alés Villota assinava uma carta publicada na edição sevilhana do ABC, a propósito da queda da taxa de natalidade, culpando as mulheres de tal facto. Na sua perspetiva, estas devem dedicar-se a criar crianças e não a «praticar desporto, fazer tatuagens e cuidar de cães» como, «fazem agora».
Mais: considerando estranho acharem que os factos que motivam a diminuição de nascimentos (generalizada, como é publico) resulta de vivermos distantes daqueles tempos «em que as mulheres eram femininas, doces e dedicadas à honrosa tarefa de obedecer aos seus maridos e cuidar dos seus lares e filhos», Alés Villota defendia que «um vento sectário e gelado, que Deus sabe de onde vem, secou-lhes a cabeça, transformando-as em estranhas, preocupadas apenas com a aquisição de direitos e títulos».
A Gemma, com o seu apurado sentido de humor, propunha-lhe: «Estarei à espera de braços abertos e a minha M16 de cano duplo limpo e brilhante, da forma como vocês, homens da vossa espécie, gostam. Vem, vem e verás, Fernandito».
O sorriso foi mesmo amarelo. Um jornal de grande tiragem publicava uma carta de um senhor, que, se vem a descobrir, era padre, dando voz ao machismo mais primário e démodé possível, mas sobretudo, a uma forma de ser e estar que é profundamente desrespeitadora de todas as mulheres e, consequentemente e na minha opinião de católica, desrespeitadora do mandamento maior: “amarás o teu próximo como a ti mesmo” …
Passaram pela minha cabeça grandes escritoras, investigadoras, cientistas, pintoras, compositoras, seres femininos e doces, com famílias e amigos, que deixaram legados, hoje úteis a qualquer um de nós, inclusive a sujeitos destes: Hildegard de Bingen, Margareth Mead, Simone de Beauvoir, Jane Austen, Sophia de Melo Breyner Andersen, Rupi Kaur, Marie Curie, Dorothy Crowfoot Hodgkin, Maria Montessori, Hannah Arendt, Jane Goodall, Dian Fossey, Florence Nightingale, Virgínia Apgar, Frida Kahlo, Madre Teresa de Calcutá e tantas, tantas, tantas outras…
Fernando, representante exemplar dos que consideram a igualdade de tratamento como desprimor, não deve saber, nem sequer, quem são estas mulheres e muitas mais, que também eu desconheço. Confunde respeito e igualdade de tratamento, com ideologia de género, o que quer que isso seja, pois não compreendo, por mais que tente, porque para mim o que vale é o tal mandamento maior, no qual somos todos identificados como filhos e filhas amados de Deus e iguais aos Seus olhos, logo, iguais perante os demais.
Esta feminilidade cultivada por conservadores, tradicionalistas, sobretudo nas alas, movimentos e países mais conservadores católicos, entristece-me. Já me pronunciei relativamente a ela e, claro está, aparecem sempre alguns que me adjetivam “muito cristãmente” de vários modos. O que me incomoda tanto como nada.
E a pergunta é sempre a mesma: como é possível negar à história, aos seres humanos, ao planeta, o potencial detido por mais de 50% da Humanidade? Nascer mulher e ser inteligente e capaz de atingir objetivos académicos, profissionais, cidadãos não é incompatível com a maternidade, ou ser feminina. Incompatível com tudo é, isso sim, viver com vendas nos olhos e, pior, no coração, vendas impeditivas de reconhecer no outro a capacidade para a grandeza, seja ela qual for. E o mesmo se aplica em relação ao racismo, xenofobia, homofobia e tantas outras formas de separar e excluir.
Por isso, Fernandito, lamento, mas esse desejo de viajar no tempo não combina nem com o hábito de sacerdote, nem com a verdadeira masculinidade. Ainda assim, se quiseres, poderemos manter uma conversa a três: tu, eu e a Gemma, porque, acredita, deve ser qualquer coisa 😉!
Será girafa ou elefante?!…. Assim anda este nosso mundo.
Sandra Cortes-Moreira *
* Licenciada em Comunicação Social, pela FCSH da Un. Nova de Lisboa, Mestre em Comunicação Educacional, pelas Faculdades de Letras e de Ciências Humanas e Sociais das Un. de Lisboa e Algarve e Mestre em La Educación en la Sociedad Multicultural pela Universidad de Huelva. É doutoranda em Educomunicación y Alfabetización Mediática do Doutoramento Interuniversitário em Comunicação, pela Universidade de Huelva/Espanha, sendo o seu tema de investigação a Turism Literacy.
Técnica Superior de Línguas e Comunicação na Câmara Municipal de Faro, é também Assessora do Gabinete de Informação da Diocese do Algarve, membro da equipa da Pastoral Diocesana do Turismo e secretária da Pastoral do Turismo – Portugal (PTP).