Não foi num jornal que vi. Nem ninguém me contou. Este é mesmo um relato na primeira pessoa, um relato que nos últimos dias me perturbou e exacerbou um periclitante equilíbrio que construí em torno da angústia.
Viajo de comboio todos os dias (ou quando as greves permitem) e num início de tarde da semana passada, ao iniciar a viagem de regresso a casa, poucos metros depois da estação dá-se uma “colisão”, como explicaria o revisor da composição, visivelmente perturbado. A colisão não foi nem mais nem menos do que uma pessoa que foi colhida, creio que de forma intencional, ou seja, ter-se-á suicidado, acabando por falecer.
Os momentos da “colisão” têm passado vezes sem conta na minha cabeça, pois ia na frente do comboio e pude, tal como todos os passageiros, perceber que as rodas do veículo passavam sobre algo, num estrépito que não esquecerei tão cedo, ou mesmo nunca.
Nesse momento recordo-me de fazer uma oração instantânea: -«Senhor, que tenha sido somente uma bicicleta que caiu». Mas não era uma bicicleta.
Rapidamente a carruagem foi rodeada de INEM, bombeiros, polícia. Todos com ar sério e fazendo o seu trabalho: fotografaram, interrogaram, realizaram testes de alcoolémia. Tudo, para libertar o comboio com a maior brevidade, pois toda a linha foi cortada.
Mas o que mais me tem feito refletir foi a atitude daqueles que estavam nos vagões. Uns, estrangeiros de férias, apenas se inquietaram com os atrasos que sofreriam as suas atividades, já pagas e que não estavam disponíveis a perder e aproveitavam para se conhecer e apresentar animadamente; outros comiam de forma ávida, aproveitando a imobilidade do veículo; outros cirandavam de cá para lá, movidos por aquela curiosidade mórbida de ver, de ver tudo, de ver bem, para se sentirem horrorizados e condoídos, quando contassem aos demais a aventura do dia. Outros, ainda, telefonavam animadamente. Houve, até, quem visse vídeos e com o som alto. Todos super aborrecidos, porque não iriam cumprir os planos para o dia, dado o atraso que, evidentemente, era inevitável.
Eu tinha uma reunião de avaliação do doutoramento. Não me preocupou, pois haveria forma de conseguir solucionar a situação, mas não conseguia distanciar-me do nível de ruido que estava ali dentro… Quanto mais alto falavam e riam as pessoas, quanto mais os sons se propagavam, mais eu percebia que ninguém tinha, realmente, consciência do que acabáramos de viver: uma pessoa tinha morrido, uma pessoa que provavelmente teria família – pais, filhos, irmãos -, que teria um trabalho e que estaria a construir o seu lugar no mundo, com uma história, por certo, sofrida. O que o levaria a ter perdido a esperança e o sentido do amor, do afeto? Quem era? Que rosto era o deste homem/mulher que viveu o maior e final desespero?????
O bulício nunca parou e eu não consegui calar o pensamento. Chorei encostada ao vidro. Liguei à minha mãe. Precisava, eu, de escutar a voz do amor, para que aquelas gargalhadas, aqueles sons de passos, os barulhos de todos os gestos indiferentes não me afogassem numa onda de indiferença e insensibilidade.
Bem sei que a morte tem de ser aceite, para suportarmos a vida, como dizia Freud, mas aceitar não implicará a banalização total, conducente à incapacidade de um momento de silêncio que seria sinal de Humanidade, de aptidão para a empatia com outro, de respeito…
Não fui suficientemente corajosa para pedir esse silêncio e penitencio-me por tal, mas não devia ser necessário, pois que a condição humana que nos une deveria ser o bastante, num tal momento, para que ele nascesse no coração, na boca, nos membros e cérebros de cada um.
Será girafa ou elefante?!…. Assim anda este nosso mundo.
Sandra Cortes-Moreira *
* Licenciada em Comunicação Social, pela FCSH da Un. Nova de Lisboa, Mestre em Comunicação Educacional, pelas Faculdades de Letras e de Ciências Humanas e Sociais das Un. de Lisboa e Algarve e Mestre em La Educación en la Sociedad Multicultural pela Universidad de Huelva. É doutoranda em Educomunicación y Alfabetización Mediática do Doutoramento Interuniversitário em Comunicação, pela Universidade de Huelva/Espanha, sendo o seu tema de investigação a Turism Literacy.
Técnica Superior de Línguas e Comunicação na Câmara Municipal de Faro, é também Assessora do Gabinete de Informação da Diocese do Algarve, membro da equipa da Pastoral Diocesana do Turismo e secretária da Pastoral do Turismo – Portugal (PTP)