Há dias que esta música, escrita por António Variações, mas dada a conhecer muitos anos depois da sua morte, pela banda Humanos e cantada por Manuela Azevedo (Clã) e Camané, me vem frequentemente à cabeça.
Oiço-a e vejo rostos importantes da minha vida, como o do meu Avô Manuel. Aos 80 anos tinha rugas vincadas e, ainda assim, continuava a ser um homem bonito, precisamente porque as assumia como sinais de uma vida rica e, mesmo vencendo muitos contratempos, feliz. Sorria muito e dava gargalhadas sonoras, que permanecem como uma das memórias auditivas mais fortes da minha vida. Quando acho verdadeiramente piada a algo e rio com prazer, imagino-o ao meu lado, a compreender a subtileza da graça e a fechar o canto dos olhos, produzindo um som alegre, muito emotivo, sentido, forte. Tinha rugas de sorrir, como diz a letra.
Penso num amigo querido, que perdeu muito peso e agora diz muitas vezes: «Tenho rugas, estou velho». Não consegue, ainda, pensar na sua imagem corporal com a certeza de que é um novo homem, um homem que tem pela frente um futuro brilhante e que pode ser tudo o que se propuser ser. A vida colocou-o na posição de, muitas vezes, se esconder, fechar os olhos, fechar a boca, fechar a inteligência, porque o seu exterior era apenas aquilo que os demais, incompetentes para ver a sua essência, percebiam dele. E magoavam. Muito. E agora, que o corpo já não é o seu esconderijo, vê somente as rugas. Rugas de chorar.
E vejo o meu pai. Um homem sábio, com uma inteligência aguda e uma capacidade acima da média para tantas coisas, criativo, com uma vida cheia de partilhas, porque nunca foi egoísta e sempre desejou que o mundo ficasse um pouco melhor do que o encontrou. Vejo-o a ensinar, a viver com os jovens, a cantar, a construir projetos e a investigar. No meu passado está sempre a comunicar e eu olho-o de coração cheio. Até um dado momento, em que se instalou nele a marca férrea da solidão, um fechamento que agora me deixa o coração apertado, porque não consigo entrar no seu mundo. Tem Rugas de sentir.
Eu sou partes de tudo isto. Sou a gargalhada dos momentos bons e a lágrima que esconde as dores. Sou o silêncio de quem viveu para sonhar somente a comunicação. Sou as canções que cantei e as letras que escrevi e todas as que estão e estarão dentro de mim e nunca serei capaz de musicar. Sou as lealdades defraudadas e as amizades eternas. Sou a formiga, que viveu entregue ao trabalho e a gazela, que percebeu que é preciso correr livre na savana, para que o corpo e a alma vivam em sintonia. Sou a insegurança de quem não se achou bonita e a certeza de que a beleza da minha mãe também mora em mim. Sou a fortaleza que tudo resolve e a dor de quem se encolhe num canto escuro. Sou um somatório de momentos e sentimentos que já me trazem «as primeiras rugas» e «começo a franzir». E sabem? Gosto das minhas rugas. Não me envergonham, nem me trazem desejos de as apagar com as substâncias próprias e da moda.
Vou guardá-las, porque dizem quem sou. E acho que até nem sou má pessoa!
O que nos faz uma música!…
Será girafa ou elefante?!…. Assim anda este nosso mundo.
Sandra Cortes-Moreira *
* Licenciada em Comunicação Social, pela FCSH da Un. Nova de Lisboa, Mestre em Comunicação Educacional, pelas Faculdades de Letras e de Ciências Humanas e Sociais das Un. de Lisboa e Algarve e Mestre em La Educación en la Sociedad Multicultural pela Universidad de Huelva. É doutoranda em Educomunicación y Alfabetización Mediática do Doutoramento Interuniversitário em Comunicação, pela Universidade de Huelva/Espanha, sendo o seu tema de investigação a Turism Literacy.
Técnica Superior de Línguas e Comunicação na Câmara Municipal de Faro, é também Assessora do Gabinete de Informação da Diocese do Algarve, membro da equipa da Pastoral Diocesana do Turismo e secretária da Pastoral do Turismo – Portugal (PTP).