Foi quando vi a reportagem do José Rodrigues dos Santos no Haiti. Foi inveja sim senhor.
Os leitores dirão «a mulher está parva», mas vejam bem se há alguma democracia lá na fábrica produtora dos destinos humanos.
jl, a minha húmil pessoa, tem sessenta anos e começou a escrever as primeiras gracinhas logo que aprendeu a escrever e isso foi aos 5 ou 6 anos como as outras crianças. Não tinham medo que o alfabeto e a tabuada a martelo nos traumatizassem e o certo é que nos ensinavam as letras e as contas sem dramas nem tramas e a aprendizagem com a mãe e a avó sem teorias pedagógicas, marchava que era um regalo.
Logo me descobri chorando com os poetas românticos e na escola da Cavalinha dava a senhora professora comigo escrevendo coisas que não eram para a minha idade. Evidentemente que aquilo era como ver um macaco a andar de bicicleta, porque o ofício da escrita não passava pela cabeça de ninguém ali em Olhão e muito menos para quem habitava para lá da linha do comboio.
Encurtando o responso e voltando à minha inveja de ontem à noite, vi-me não só a mim mas tantos/as colegas do meu tempo forçados a ganhar a vida com profissões que eram o oposto da sua verdadeira vocação. E esta vocação para a escrita, no meu caso a poética e – vá lá – uma bocadinho a anedótica, não é coisa que se leve ao médico e pronto.
– Faça aí uma raspagem ao cérebro da minha filha que leva a vida a fazer versos e essa asneirada nunca deu de comer a ninguém!
Não era possível, não é verdade?
Concorri para hospedeira de terra, eu queria era ir para o ar mas essas tinham má fama e além disso eu enjoava muito. Então, entre hospedeira de terra (naquela altura tinham um chapelinho medonho com duas borlinhas) e a clientela toda atrás como borregos, optei por ir para bancária. Assim já eram os clientes que iam à frente e eu atrás deles a usar a minha imaginação de poeta para engordar o meu querido banco (não estou a brincar, era o meu querido banco).
Voltando ao José Rodrigues dos Santos e ao sentimento vergonhoso que me assaltou. Ali estava de cabelinhos em pé, carinha de rato, aquilo que eu queria ter sido (em fêmea) : um jovem comunicador/escritor/jornalista/rico/elegante e saudável (parece), todo artilhado com os adereços à Coronel Tapioca, óculos à rei Faysal, falando pelos cotovelos, microfone na mão, telemóveis, bússolas, cantis e nós todos a olhá-lo e a ouvi-lo, incluindo eu, a babar-me, com os olhos de fora.
Não obstante o facto de o JRS ter ido para um cenário horrível, foi ao encontro da sua vocação, foi enriquecer-se como pessoa sensível que é (quase chora e vomita naqueles lugares, eu imagino) mas foi sobretudo absorver as sensações, os cheiros, as situações que um dia irão aparecer com toda a assepsia na alvura das suas páginas marcadas com vivência na 1ª. pessoa, das milhentas situações que irá gravar, marcar, escolher e guardar num belo suporte de sei lá quantos gigas comprados à dúzia nos Estados Unidos.
Imaginei-o a andar por ali com o seu próprio gravador na mão, o ajudante com a câmara, um diário electrónico, a encher a sua alma de artista até lá não caber mais nada.
Depois, à volta, e em três penadas, escreve outro livro porque sabe escrever, gosta de escrever, aprendeu a escrever e…. ah inveja das invejas … material não lhe falta, musos e musas de todas as cores, tamanhos e feitios.
A ressacar da comoção nada mais tenho a dizer. Aqui neste pinhal onde não acontece nada, é preciso cavar na imaginação, como quem cava na terra. E eu hoje escrevo inspirada num jovem escritor a quem não faltam fontes que o ajudem a escrever uma reportagem, um livro, uma resma de livros com a mesma facilidade com que eu escrevo uma crónica de duas páginas.
Uma reles crónica, cujo muso, vendo bem, foi o abjecto sentimento da inveja.