Venho a aspirar a esta cegueira encantada, autoinfligida e sem precedentes para sentir menos revolta. Já não consigo disfarçar. O sol perdeu a força e o brilho e o calor e já não consigo não olhar para o horizonte a direito. E penso, de mim, para mim: “cá vai disto, outra vez.”
Ao escrever escolho as palavras. Já reiniciei esta crónica milhares de vezes. E por milhares de vezes parece que me repito. Porque sinto que escrevi tudo sobre este tema o ano passado e que cometo o pecadilho do auto plágio. Será que consigo perdoar-me? E o leitor? E será que conseguiremos perdoar o ato vil das demolições? Este último, não. Nunca.
Em Fevereiro deste ano, perguntava-me quanta areia caberia nos bolsos de um país incontinente, à beira do mar e da senilidade. Perguntava-me como é que a mesma mão que mandava demolir casas nas ilhas barreira em prol de um suposto ambientalismo, contratava a exploração de combustíveis fósseis na costa. Agora dizem que é pela segurança. Sim, deve ser isso mesmo.
Em Outubro de 2015, indagava-me das razões que poderiam ter os poderes executivos (o executivo e os que executam as execuções – sacrifícios humanos, na verdade) para quererem aniquilar a pesca artesanal, alugando a costa e retirando-a aos pescadores. Como se se envergonhassem deles, assim de repente, todos tecnocratas em fatos de feitura internacional, a cheirar a perfume falso.
Contei-vos que a falta de dragagens durante anos ceifava vidas, e todos sabiam, mas que a teimosia estava em derrubar casas, não em garantir segurança de populações. Não retiro uma única palavra do que escrevi. Chamem-me radical de esquerda à vontadinha. Se calhar precisamos de mais radicais de esquerda. “Há dores que se devem ter em prol do que está certo.” Seja, eu radical, então. Sempre é melhor que a falta de coerência.
Uma das pedras basilares do Desenvolvimento Sustentável (que se apregoa por aí como uma espécie de religião – e muito bem!) é a conivência das populações. Meus caros, as populações estão à revelia das demolições. Onde quer que seja.
Ninguém quer essas máquinas nas ilhas barreira. Ninguém quer os fazedores de entulho por lá, pelo Farol ou pelos Hangares, por mais helicópteros e autos e cartas. Eu cá não quero. Não há uma única lei que proiba segundas habitações. Aquelas pessoas pagam contribuição autárquica, entre outros impostos e não são cidadãos de segunda, porque num Estado de Direito não há dessas tretas.
Foram autorizados a construir e a levar os materiais. Toda esta candura higienista e falso pudor cheiram a putrefação cerebral e a ódio obstinado. “Enquanto o sol se vai escondendo atrás de Faro” e os últimos visitantes apanham o barco da carreira os ilhéus estão em contagem decrescente. Volto a semicerrar os olhos, encadeada, não pelo sol, mas em sobreaviso. Custa-me, como disse, olhar em frente, sem sentir a dor daquela gente. Não vai ser bonito. A miséria seja esta intelectual, material ou espiritual é sempre feia. E… vai ser feio.
O cheiro da injustiça junta-se ao cheiro a maresia e o ar transpira noites mal dormidas. Não está certo. E eles sabem-no. Reflexo disso vai ser a quantidade de força que vai ser usada contra cidadãos desarmados nos dias marcados. Ainda não sei qual vai ser, mas presumo que muita. Semicerro os olhos. Perscruto céu. Não há luz que me encandeie e é uma pena.
Selma Nunes