Já eu tinha os dezoito anos feitos.
Não tinha ainda namoro certo pois os moços da terra não me inspiravam coisa nenhuma. Habituara-me a ver no cinema aqueles gigantescos loiros e até ali só me apareciam anões com olhos de zêtoninha preta, a cheirar a canzum.
Tinha sido um de Quelfes, atarracado, meio calhandro e sempre a falar de couves. Um da Fuzeta, mais atarracado que o outro, sem um pêlo no peito e gago.
Com o da Culatra ainda andei ali meia amorroada mas foi só até o ter visto em fato de banho. Fotocópia de um galgo.
E dei comigo a observar o homem dos meus sonhos que estava ali, na Igreja grande, na missa de Ano Novo.
Era alto, musculado, e quando virou o rosto e eu dei de caras com aquele par de olhos, até estremeci. Só nas revistas estrangeiras é que se viam olhos daquela cor azul. Azulão, azulinho, cor da ria Formosa em dia de calma.
Saí da missa meia esparvoada mas não demorei muito a saber quem era.
– Então chegou o Zé Armando?
– Sei lá quem é o Zé Armando, mãezinha!
– O sobrinho do Banana, filho da Mari João e do francês!
Comecei a espetar as orelhas!
Então não foi esse rapaz que veio para comprar a horta do Ramos? Foi! – E é engenhêro! Formou-se em Lyon! O franciú morreu e deixou-lhes uma fortuna, a ele e à Mari João. Mas que idade já terá a Mari joão? Ora deve ser quase da idade do tê pai, talvez três ou quatro anos mais nova não sei.
Aí estava! Um homem mais velho que eu, en-ge-nhê-ro e riquíssimo. Ainda por cima loiro e com sangue es-tran-gê-ro.
– Vou lavar a cabeça mãezinha! À noite devíamos sair, apetece-me.
Saímos e lá estava ele à porta da Bijou, no meio dos outros moços. Parecia um príncipe num cardume de cães. Que garbo! Que figura!
Comecei a falar alto, tossi, puxei a saia pra cima do joelho, estricei as mangas da blusa. Moita! Como quem não quer nada perguntei à minha mãe – Então aquele parvalhão de olho de besugo é que vai comprar a horta do Ramos?
– É! E vai-se já embora amanhã, morreu-lhe um tio!
Durante umas semanas sonhei com ele e quando a memória já me começava a atalhar a saudade, toma! Aí estava ele na avenida nas festas do Carnaval.
Oh época maravilhosa! Corri a casa da Isabelinha do Maneta que era doida por máscaras e consegui a muito custo que os meus pais me deixassem ir nessa noite a um baile na Recreativa Progresso.
Mascarei-me de odalisca com uns restos de cetim roxo que tinham sobrado de uns paramentos para a Igreja. Levava os braços cheios de pulseiras e na cabeça uma lata de conserva, pintada com tinta dourada a imitar um toucado em ouro. Consegui que o meu avô lhe fizesse uns furos para entrelaçar o cabelo, onde depois cosi uns bocados de tule encarnado. Pintei os olhos à Cleópatra e pus uns brincos pendentes em cor de rosinha. Claro que para ninguém me conhecer tapei a cara com uma mascarilha e disse às outras, Código: Xerazade!
Quando cheguei no magote das moças ele ainda não tinha chegado. A parva da Eduarda vestiu-se de amazona para mostrar bem as curvas e a Isabelinha ia de Jane Tarzan com as tristes das caniças à vela.
Muito nervosa, andei ali aos pulos atrás das outras a atirar saquinhos de serradura e papelinhos e sempre com o olho na entrada.
Dali a um grande bocado chegou um grupo aí de umas seis mascarinhas.
Não foi difícil descobri-lo porque alto, forte e com aquele olho azul, azulão, só havia um e estava mascarado de Moura Cássima. Vinha todo envolto em panos brancos, com um véu opaco no rosto. Mal se lhe viam os olhos mas, a mim não me enganou.
Havia ainda outro de olho azul mas esse vinha de Sandokan, muito pindérico, com um fatinho de cetim amarelo muito justinho «naquilo».
Na, só podia ser o mais alto pois um todo entrapado de múmia tinha os olhos castanhitos e o outro era muito palonço e vinha de freira. Havia ainda um urso e um macaco mas eram demasiado baixinhos para serem Ele.
Ajeitei a lata no alto da cabeça, sacudi as pulseiras e com risinhos fui direito a ele e de longe atirei-lhe papelinhos. Ele fez-me sinal de pião com os dedos para irmos dançar. Era a moda e eu fui zunindo!
A Isabelinha Maneta atracou-se ao múmia e a Eduarda atirou o chalavar ao Sandokan.
As primeiras três músicas dancei-as em silêncio. Eu estava panca e muda e pelos vistos ele também pois quando lhe perguntei se me conhecia, só me respondia, Uhm! Uhm! Ai o que eu me ri pra dentro!
Mas com aqueles olhos azuis, azulinhos quem é que precisava de palavras?! Estive no céu o resto da noite. Às três da manhã ele já me apertava e às quatro andávamos de mãos dadas. Tinha mãos de seda, não era como os galapos rugosos dos rafeirões da terra.
Que fino, que jeitos! E exalava um perfume que me almareava toda! Aquilo sim, não era cá como os outros cancurros sempre a cheirar a bedum!