Imaginemos este burrié letrado, (Dr. Cornetinha, Gastrópode Aquático, Caramujo da Ria, Gibbula Divaricata da Silva Throcidae) com residência no pilar esquerdo, número cinco da Ponte da Aldeia da Culatra, 8005-556 Faro, Ria Formosa, Algarve, Portugal, pai de cinco filhos e meio (incerteza quanto ao último) a ver a maré encher, vazar, em praia-mar, a sentir na casca o turismo a aumentar, os esgotos a extravasar, as toxinas a proliferar e muitas coisas acabadas em “ar”, tomando como exemplo o verbo “envenenar”.
Este burrié que tira “selfies” ao fim de semana e joga ao “Não te irrites” com a família e amigos, já partiu dois telemóveis a tentar mudar a fotografia do perfil da Ria Formosa, sem êxito.
Na conversa imaginária que tivemos, o Dr. Cornetinha (para os amigos) está preocupado, não com os seus títulos e nomes compridos, mas com as ofensas físicas e morais de que continua a ser alvo.
Contestatário, nega-se a apoiar a política da demolição e defende a requalificação sem renaturalização, pois acha que o ser humano, no geral, não consegue naturalizar nada, sem ser de modo artificial, nocivo e pouco altruísta. “A natureza não é feita a bulldozer”, afirma com veemência.
Com um triste abanar da sua concha univalve, diz que sem os ilhéus a vida seria triste, lá se ia a sua casa debaixo da ponte, os desfiles de moda à chegada do barco da carreira e todo um cartaz cultural magnânimo e digno de respeito. Até porque os ilhéus precisam e gostam tanto da Ria quanto ele.
O burrié vota todos os anos, a não ser que haja boicote. Nas próximas eleições vai apoiar o movimento e as associações de ilhéus, pois estes, melhor que ninguém conhecem a Ria Formosa e sabem os desafios reais que se lhe impõem. Não acredita em estranhos, mesmo que se mascarem de seus benfeitores. Perdeu a inocência…
Ainda tentei explicar que as associações não serviam para ir às urnas, mas ele riu-se e retorquiu que devia ser ainda a única coisa que não faziam.
Entretanto, o sol poente desceu, um vento quente soprou contra a ponte e as ondas começaram a cantar tepidamente contra os pilares.
Apercebi-me que o burrié tinha uma visão clara, apesar do que andam a atirar para a Ria Formosa.
Pouco importam as etiquetas. A Ria Formosa está em perigo, sim, mas não por causa das habitações. É preciso despoluir, porque assim a única coisa que se conserva com esta treta toda é a teimosia da repetição e a vaidade de um ego que não presta serviço a coisa nenhuma senão a si próprio e portanto, não tem serventia e deve ser renaturalizado. Não estou a falar do burrié, obviamente. Esse tem cinco filhos e meio para criar.
Selma Nunes