Porque todos os dias são bons para ser 19 de Julho

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Vivemos com medos desde novos. Povoam a nossa imaginação e assombram-nos os sonhos desde a mais tenra idade. Porque somos frágeis, pequenos, inseguros, dependentes e não controlamos o ambiente ao nosso redor. Os medos alimentam-se da escuridão. Devoram-nos nas horas de penumbra.

Os nossos medos são um pouco o nosso instinto de sobrevivência a alertar-nos para o que não é percetível. Poucos de nós, seres humanos ocidentais, europeus, portugueses, vivos em pleno século XXI, conhecemos o breu completo e não damos o devido valor ao facto de andarmos na rua sem ser aos tropeções, ou chegar a casa e conseguir ver tudo ao redor com um mero aperto de botão.

No dia 19 de Julho de 1987 a população da Culatra uniu-se em torno de um direito que era já o da maior parte dos portugueses. O direito de assistir televisão sem ligar um gerador barulhento. O direito a não ser intoxicado pelo candeeiro a petróleo. O direito a não temer um incêndio causado por uma vela. O direito a ser considerado cidadão comum com os mesmos direitos que os outros cidadãos. O direito a ter eletricidade.

Em frente à Capela da Nossa Senhora dos Navegantes, respondendo ao rebate dos sinos, decidiram não votar, pois quem não tem direitos, não tem deveres.

Aprenderam que a união é mais do que uma palavra bonita. É verdadeira. Em Portugal a união não costuma ser muito comum, por restos de um medo antigo e sombrio, mas aos olhos dos mais incrédulos – fez-se luz. A comunidade da Culatra tem eletricidade porque não são cidadãos de segunda categoria e têm os mesmos direitos e deveres que os outros, seus iguais. Mais do que isso: têm direito a ter medo, direito à habitação, direito aos seus postos de trabalho, direito à emergência médica – enfim, direito a ser portugueses, cidadãos europeus, mesmo numa europa que se pensa elitista e que nos olha a todos por cima do ombro. Mesmo assim.

Vinte e oito anos volvidos, validos da mesma força reivindicativa em massa, com um sentimento de pertença para sempre ancorado a esta faixa de areia, sem desistir e sem ter medo de sonhar, chegaram às areias da comunidade o porto de abrigo, a água canalizada, a placa para o transporte de emergência médica – enfim, um rol de coisas essenciais, básicas, que qualquer comunidade humana necessita para sobreviver. O mínimo dos mínimos. Com a mesma força e sentido de justiça, há que manter a união para continuar a trilhar o bom caminho, caminho este que muitos criticam, mas que nunca fizeram, porque viveram sempre com tudo à mão, inclusivamente o botão anti-medo, ou seja, o da luz.

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Vinte e oito anos depois os culatrenses continuam culatrenses, mas precisam de estatuto legal e administrativo. Não se podem deixar sugar vivos pelos monstros da infância. Devem permanecer unidos, porque todos os dias são bons para ser 19 de Julho.

Selma Nunes

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