A minha Casa Portuguesa sem lentilhas, mas com memória

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azulejo-portuguesPosso dizer que sou afortunada pois conheci todos os avós e bisavós do lado materno. E se isso causa alguma admiração nas pessoas, imagine-se então, quando conto que na minha infância fui algumas vezes visitar a minha trisavó pela mão da minha bisavó. Íamos de autocarro até ao Livramento.

A “avó do campo” recebia-nos de lencinho na cabeça, muito magra e enrugada, sempre sorridente. É esta a imagem que tenho. Uma senhora de corpo frágil a perguntar se quero figos, nêsperas, laranjas, pão com azeite, toda ela só olhos, muito brilhantes.

A bisavó que quando vinha a Olhão me levava ao Livramento de autocarro era uma excelente contadora de histórias. Não me lembro se ela começava com o tradicional “era uma vez”, mas acho que não. Pela maneira como enxugava as lágrimas de riso no lencinho florido, acho que se divertia com a própria imaginação, meneando a cabeça em descrédito, à medida que ia acrescentando pormenores às aventuras que acabava de inventar.

A sua própria vida foi uma aventura. Não sei se ela tinha bem a noção disso. Atravessou o Guadiana grávida do primeiro filho, com o meu bisavô, seu marido, por falta de trabalho e comida em Portugal. Às escondidas, obviamente. Estiveram fechados duas semanas num barracão com medo de ser descobertos e à espera para poder passar. Portugal tinha participado na I Guerra Mundial e ainda mal se tinha levantado, já estava à mercê de um regime ditatorial e já se ensaiavam os poderios para a II Guerra Mundial na vizinha Espanha. Não havia sustento em Portugal. Nessa altura, aEspanha foi palco de uma guerra civil sangrenta. Eles estavam lá, na Isla Cristina.

Quando lhe perguntávamos se não tinha sentido medo dizia que sim, naturalmente. Muito. Vinham homens a cavalo perguntar de que lado estavam e invariavelmente respondiam “do seu” pois não percebiam nada daquilo. Queriam era viver e sobreviver, de preferência, sem confusões!

A uma dada altura, filas enormes para a comida. Só havia lentilhas. Muitas lentilhas depois o meu bisavó socou o prato, “à fava com as lentilhas, vamos para Portugal.” E foi assim que regressaram. Tinham alguma família na Ilha da Culatra e por lá também se fixaram.

Ao ver as notícias, penso. Lá porque fenecemos depressa demais, não foi assim há tanto tempo. Estas convulsões de uma Europa esquecida do passado dão votos às extremas e causam cisões irreparáveis. O extremismo que vem reaparecendo debaixo das pedras agora, cheio de nacionalismos bacocos é o mesmo extremismo que quase matou o povo à fome e que fez com que se fugisse daqui, para todo o mundo. A mesma extrema (ou pior!) que fala condoída dos cidadãos que não têm para comer é a mesma que junta os simpatizantes mais radicais para lhes bater em becos escuros, durante a noite, porque estes são “a vergonha da pátria”- dizem eles. Às vezes batem em pessoas mais morenas também.

Era uma vez um país que se deixou vender e depois vai-se deixando vendar para nunca mais ter o medo de poder ver. Mas essa história, a minha bisavó não me contou. Nas histórias dela havia bruxas, paus que batiam no chão e encontravam água e às vezes mulas e burros que falavam.

Nos tempos da minha bisavó, poucos viviam bem. Havia insegurança e havia medo. Mas vejamos, até nessa altura: “e se à porta humildemente bate alguém/ senta-se à mesa com a gente (…) ” – mesmo sendo a canção que é!
Simplificando, a memória geracional é uma coisa engraçada: posso desde já declarar que a família não come lentilhas até hoje.

Selma Nunes

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