Observei a maneira como semeias os ventos, na mudança da maré, como se fosse um câmbio de humores ou um capricho, todo ele humano, impertinente, quase infantil. Mas não és. És mar, maré, oceano, e habitáculo de peixes, mariscos, tritões, algas, musas e outros seres fantásticos. Às vezes quase que te oiço rir, jocosa. E imagino que cantaste tantas vezes a tua música de água que todos os búzios no mar aprenderam o refrão. Hoje o meu refrão é: “Basta um palmo de água…”
Registei a tua forma rebelde de enrolar melenas, ou o simples trejeito que fazes quando chegas com força e desejas arrebatar tudo o que existe ao alcance só para ti.
Porque sabes. Sabes perfeitamente que se quiseres, o que tocas será teu. Já eu, não sei nada.
Tento adivinhar-te em vão, mas sou limitada na minha humanidade, sabendo que os meus humanos olhos nunca abarcarão o teu corpo todo, todas as tuas verdades, nem as tuas vontades. “Basta um palmo de água para uma criança…”
Não te tenho medo, mas respeito-te. Faço por deitar-me em ti em mergulhos refrescantes. Sempre e desde sempre. Agora, todos te procuram, de sorrisos acesos e peles por torrar. “Basta um palmo de água para uma criança se…”
É claro que esta minha interpretação das tuas idas e vindas líquidas é ridícula. Humanizo-te para te compreender. Imagino-te livre, jocosa, alegre, enterrando calhaus, soltando conchas, vivendo de avanços e recuos na areia, brincando nas margens, mais ou menos salgadas. “Basta…”
Curiosamente, nós, humanos, com os nossos frágeis corpos mortais e vontades movediças, com estes nossos egos quase do teu tamanho e frutos da cultura vigente, nós desejamos voltar a ti sempre, calorentos, como quem regressa ao ventre materno.
Voltamos para te perscrutar o horizonte, saudosos da tua frescura jovial, às vezes salgada. E entregamos os nossos corpos ao teu corpo, porque representas tempos alegres. Mas… “basta um palmo…”
Esquecemos por vezes que, com sorte, não nos levarás para longe para depois nos devolveres à terra. Com sorte, brincarás connosco amistosamente como brincas com as conchinhas, cantando para os búzios, sorrindo, como se fossemos teus filhos, ou amigos de longa data. “Basta um palmo…”
Contudo, sei que nos cabe não confiar apenas na sorte e na tua boa vontade estival: convém manter vigilância apertada nos mais novos. Porque tu, nossa água, nossa praia, nosso horizonte, a quem sempre voltamos, tu és de caprichos e nunca se sabe para onde um teu capricho nos pode levar, nem quando e como nos vais devolver. Cuidado. Somos tão frágeis. “Basta um palmo de água para uma criança se afogar”.
Guardei no peito os teus modos irreverentes de andar para a frente e para trás, molhada de ti, despenteada de tempo, de areia e de sal. Mas sei que não nos podes guardar no teu peito de igual modo. Basta um palmo teu. Rios, ribeiras, lagoas, tanques, piscinas, e por último as minhas favoritas: praias. A média está em nove afogamentos por ano. Guardei no peito. Mas com respeito. Cuidado. Basta um palmo para fazer sete.
Selma Nunes